Cho Oyu
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Por vinte e cinco anos venho percorrendo as montanhas do Himalaia e olhando os grandes e imponentes gigantes se elevando mais de 3.000 metros acima das lindas trilhas que por si só já estão normalmente muito acima do ponto culminante do Brasil. Nesses anos tive a oportunidade de vê-las todas de perto, todas as 14 montanhas com mais de 8.000 metros. De todas, claro, o Everest foi a que mais visitei, tendo guiado 41 grupos ao seu campo base. Com muita freqüência, também cheguei próximo ao Cho Oyu, a sexta mais alta do planeta, já que um dos treks que guio, o Vale de Gokyo no Nepal, chega bem próximo ao seu campo base.
Sendo apaixonado por escalada em gelo e neve, nada mais natural do que sonhar em escalar uma delas. Nesses anos todos de guia de montanha por algumas vezes cheguei a considerar seriamente tomar esta decisão. Dai, por um ou outra razão, acabei desistindo. Não é um empreendimento fácil a ser considerado levianamente. Afinal é um comprometimento considerável em termos de tempo, usualmente mais do que um mês, de dinheiro com custos chegando na casa dos US$ 50.000 e exigindo um preparo físico imenso. Não é fácil reunir todas essas condições. Para complicar ainda mais, eu queria estar em uma expedição onde tivesse as pessoas certas ao meu lado, já que dividir algo desta magnitude exige um espírito de equipe, cooperação e muitas risadas para compensar o stress causado pelo cansaço crônico e os perigos enfrentados diariamente.
No ano passado, eu e a Andrea decidimos levar adiante este sonho e nesses 16 meses não fizemos outra coisa do que treinar e direcionar toda nossa vida no sentido de estarmos prontos para subir nosso primeiro 8.000 metros, o Cho Oyu. Esta linda montanha foi escolhida levando-se em conta o custo, uma das menos caras, seu grau de dificuldade menor, a facilidade de acesso, à apenas três dias de viagem por terra a partir de Katmandu e sua altitude, 8201 metros, não tão alta como Everest, Kanchenjunga, Lhotse e Makalu, mas mais alta do que muitas que são poucos metros acima da marca mágica dos 8.000. Os planos incluem escalar o Everest no próximo ano e considero que o Cho Oyu é a melhor montanha para adquirir a experiência que necessitamos para o Everest.
Nesses meses todos fizemos uma infinidade de trekkings de altitude sempre com mochilas pesadíssimas e escalamos bastante. No ano passado fomos ao Aconcagua, Huayna Potosi pela rota francesa, Pequeno Alpamayo, Sajama, Chimborazo e Cotopaxi. Neste ano subimos o McKinley, o Elbrus e o Kilimanjaro. Agora estamos prontos e em apenas 48 horas estaremos saindo para o Cho Oyu. Nem posso acreditar! Após vinte e tantos anos de sonhos finalmente as condições corretas aconteceram.
Gostaria de convidá-los para acompanhar-nos nesta jornada que, tenho certeza, não será fácil, mas espero que seja de crescimento interior, divertida e, claro, bem sucedida. Estaremos tentando enviar novidades a cada dois ou três dias por nosso sistema de comunicações. Digo que espero mandar, já que comunicação por satélite nem sempre funciona como gostaria. As fotos não serão muito freqüentes, já que seu envio é bastante oneroso, me desculpo por isso. Apesar da Andrea ser a primeira mulher guatemalteca a ter subido o McKinley, a mais alta da América do Norte, possivelmente a primeira guatemalteca a ter subido o Aconcagua, Elbrus e Kilimanjaro e em breve se tornar a primeira centro americana a escalar um 8.000, os prometidos patrocínios não se concretizaram e nossas finanças estão um pouco abaladas.
Pela mesma razão me desculpo antecipadamente por não responder aos e-mails que eventualmente vocês me enviem. Fica para a volta.
Hora de iniciar o sonho. Em poucos dias envio novidades!
30/8/2009 – Saindo De Katmandu rumo ao Tibete
Surpreendentemente dormi bem apesar da emoção da última noite em Katmandu antes da partida. Acordamos com o despertador às 5 da manhã e antes de descer enviamos os últimos e-mails. Não importa o quanto você faça, sempre ficam coisas para a última hora, neste caso literalmente. As seis estávamos a caminho e o clima no ônibus era quase festivo apesar da hora. Para todos era o primeiro 8.000 metros, menos é claro para o Victor, nosso guia e organizador da expedição e para o nosso sardar, Padawa, o Sherpa principal que tem onze cumes de Everest e cinco de Cho Oyu, além de algumas outras... Apesar da hora, o trânsito para sair de Katmandu estava no seu normal, caótico, congestionado e lento. A partir de Dulinkel, na borda do vale, a estrada ficou mais tranqüila e muito mais bonita e em pouco tempo estávamos seguindo ao lado de rio Bhoti Kosi cujas águas desciam ferozmente das montanhas que dividem o Nepal com o Tibete, nosso destino em poucas horas. Ou assim pensávamos. Após três horas de viagem, tivemos o primeiro problema. Um homem de 50 anos tinha sido atropelado na noite anterior e seu corpo jazia ao lado do bloqueio que os habitantes do vilarejo próximo tinham colocado. A estrada estava fechada e nós tivemos de caminhar sobre o bloqueio e tomar um outro ônibus para seguir o caminho. Mas, não seria assim tão simples, estamos na época de chuvas e dois desabamentos bloqueavam a estrada mais adiante. Após mais duas trocas de transporte, o seguinte a caçamba de um caminhão e depois uma camionete, chegamos a Kodari na fronteira. Já era muito tarde para prosseguir. A fronteira chinesa fecha às 15 horas e não teríamos tempo de chegar lá. Ficamos em Kodari para a noite. A aventura começou muito antes de chegarmos a nossa montanha. O grupo está super gostoso. Apesar de termos nos conhecido a apenas dois dias, já existe uma descontração que mostra que vai ser uma boa expedição. Assim espero.31/8/2009 – Começando nossa aclimatação
Saímos de Zangmu às 19 horas conforme planejado e duas horas mais tarde estávamos em Nyalam. A viagem foi espetacular com a estrada seguindo sinuosamente a garganta extremamente profunda passando ao lado de lindas cachoeiras. Levei um grande choque ao chegar a Nyalam, pois me lembrava do lugar como um sonolento vilarejo de casas de adobe. No seu lugar encontrei uma pequena cidade chinesa de puro concreto com vários prédios de três e até quatro andares. Mais e mais o Tibete está desaparecendo para se tornar parte da China e isso é profundamente doloroso para mim.
1/9/2009 – Primeira etapa cumprida
A noite surpreendentemente foi muito ruim para mim. Pensei que estava aclimatado a esta altitude por causa do trek do Manaslu, mas me enganei e tive dores de cabeça e náusea por boa parte da noite. Porém, acordei bem disposto e fiz nossa caminhada de aclimatação de seis horas de duração onde subimos quase 800 metros sem maiores problemas.
Com essas duas noites em Nyalam a 3750 metros mais uma etapa de nossa aclimatação foi concluída e estamos prontos para subir mais um pouco. Amanhã vamos para o vilarejo de Tingri a 4500 metros.
Dia 02-09-09 – Subindo mais
A viagem de Nyalam a Tingri foi lindíssima e pela primeira vez senti que realmente estava no Tibete. Grandes espaços abertos, montanhas nevadas e pequenos vilarejos tipicamente tibetanos com casas tradicionais com teto plano secando o trigo recém colhido. Boa parte da população estava nos campos colhendo trigo que aqui é bem menor do que eu estou acostumado a ver, mas de cor igualmente bonita, dourados no meio da aridez do platô.
Após o surpreendentemente saboroso almoço, no igualmente bom hotel saímos para uma caminhada até uma antiga gompa (pequeno templo tibetano) passando pelo caminho pelo vilarejo antigo muito mais atraente do que as vilas chinesas que tínhamos visto até então. Dá dor no coração pensar que tudo isso irá desaparecer em poucos anos com o avanço da cultura chinesa.
Dia 03-09-09 – Chegando aos 5.000 metros
Hoje, prosseguindo nosso programa de aclimatação fizemos uma longa caminhada subindo 600 metros até o topo de uma colina perto de Tingri. Apesar das duas últimas noites não terem sido das melhores para mim por causa da altitude, caminhei forte e sem notar muito o ar rarefeito dos quase 5.000 metros. A vista estava absolutamente espetacular com o vilarejo tradicional, o vale com o rio serpenteante e as montanhas nevadas no horizonte entre as quais se destacando claro, a Deusa Turquesa que é o que o nome Cho Oyu significa em tibetano.
Dia 04-09-09 – Chegando ao Campo Base Chinês
Apesar dos dias até agora terem sido deliciosos, hoje eu senti que a expedição realmente começou. Após uma surpreendentemente curta viagem tendo sempre o Cho Oyu ao fundo, chegamos ao Campo Base Chinês, na cabeceira da estrada. Este não é nosso verdadeiro campo base que está ainda há dois dias de caminhada daqui, mas com várias outras expedições já instaladas aqui já tem um clima de montanha. Dormiremos aqui por quatro noites e durante estes dias faremos caminhadas a altitudes cada vez maiores nos preparando para ai sim ir ao campo base real.
Instalamos-nos, tiramos nosso equipamento dos barris plásticos onde os tínhamos acomodado para a viagem e, após o almoço, saímos para uma pequena prática de escalada em rocha. Fiz duas vias fáceis, uma um 5 e a outra um 6B, mas isso a 5000 metros foi um bom desafio. O resto do dia foi passado dentro da barraca refeitório contando histórias, piadas e rindo muito.
Resumo desses seis dias de expedição. Estou amando tudo, absolutamente tudo, da organização aos companheiros e as atividades. Espero que continue assim.
05 e 06 - 09-09 – Aclimatando no campo Base Chinês
No segundo e terceiro dias de aclimatação no campo base chinês fizemos duas caminhadas longas de aclimatação, a primeira chegando a 5400 metros e a segunda a 5700 metros. Nesta segunda caminhada chegamos à altitude do campo base permanente e eu me senti extremamente forte ganhando altitude sem problemas e não me sentindo exausto na volta. As noites também tem sido excelentes sem dores de cabeça ou insônia, dois sintomas comuns na altitude.
07-09-09 – Praticando escalada em rocha
Hoje, além de ter chovido toda a noite, amanheceu completamente encoberto e chovendo. Desde que saímos de Katmandu o tempo tem gradualmente piorado e após Tingri já não pudemos avistar o Cho Oyu que se encontra constantemente coberto por nuvens negras. Isso não chega a nos preocupar já que ainda levaremos bastante tempo para chegar mais alto na montanha.
Saímos para nossa caminhada diária com uma chuva fina que não chegou a atrapalhar. Resolvemos fazer hoje algo mais leve, apenas 4 horas sem muito ganho de altitude. Seguimos vale acima e ao encontrarmos algumas rochas praticamos escalada em bolders e voltamos para o acampamento. Como amanhã seguiremos para o campo intermediário, 400 metros acima deste, tivemos a tarde livre para organizar nossa bagagem e equipamento e deixa-los prontos para os yaks que vão levar tudo até o campo base. Aproveitamos também para tomar um banho quente, lavar alguma roupa e eu e o Greg, o outro médico, organizarmos nossa mochila de primeiros socorros e medicamentos.
A tarde o tempo melhorou um pouco e tenho esperança de que amanhã possamos caminhar com céu azul, ou pelo menos sem chuva.
08-09-09 – Mais uma etapa, campo intermediário
Após quatro noites no campo base chinês hoje mudamos de acampamento para o intermediário a 5300 metros, a mesma altitude do campo base do Everest. Eu, a Andrea e o Marco resolvemos fazer a caminhada rapidamente como um treino e demoramos duas horas e vinte minutos ao invés das quatro esperadas. Mas, não sabíamos dos planos do Victor e pouco depois que todos chegaram, nós comemos, nos hidratamos e saímos para mais uma caminhada de aclimatação, a mais dura até agora. Subimos uma montanha atrás do campo e chegamos a 6-24 metros, ou seja, um ganho vertical de mais de 1100 metros em relação ao campo. Cheguei muito cansado, mas feliz de ter conseguido e fomos brindados com um bonito glaciar e lindas vistas da montanha em frente ao Cho Oyu pela qual estou apaixonado. Ainda não sei o nome, mas suas formas me atraem e me pego estudando uma possível rota e pensando que talvez após o Cho Oyu...
09-09-09 – Finalmente no Campo Base, nosso lar até o fim da expedição
Hoje, após onze dias de caminhada de aproximação e caminhadas de aclimatação finalmente chegamos no nosso campo base, nossa casa por pelo menos 20 dias e talvez bem mais, dependendo da janela de bom tempo que determinará o dia de nossa primeira tentativa de cume.
A caminhada demorou 4 horas, mas para mim pareceu muito mais, pois estava muito cansado pelo esforço do dia de ontem. Logo ao levantarmos tivemos como presente uma maravilhosa visão da Deusa Turquesa, do Cho Oyu, agora muito mais próximo do que da última vez que o vimos em Tingri. Ficamos hipnotizados estudando a rota enquanto o Victor nos contava onde estava o campo dois e o três de onde partiremos para o cume. Visto desta distância as escarpas parecem muito inclinadas e intimidantes e a altura que temos que subir parece quase impossível, mais de 2500 metros verticais de gelo e neve.
Chegamos ao campo base e mais trabalho nos esperava para montar o campo. Eu e a Andrea escolhemos uma pequena plataforma que não era suficiente para nossa barraca e por uma hora cavamos e tiramos pedras do chão duro para finalmente termos um espaço como queríamos. Afinal estaremos aqui por muito tempo.
10-09-09 – O tempo continua ruim...
Acordamos com uma linda vista do Cho Oyu aparecendo entre a fresta da porta de nossa barraca. Do lado de fora tudo estava coberto de neve que caiu deste o final da tarde anterior. A paisagem não poderia estar mais bonita.
Tomamos café da manha e saímos para nossa caminhada de aclimatação e hoje, de todos os dias ate agora foi o que eu cansei mais apesar de termos subido apenas 300 metros. O caminho foi pela morena, a colina de pedras ao lado do glaciar com subidas e descidas e com pedras soltas e gelo. O esforço foi plenamente compensado pela vista das montanhas e mais do tudo pelos lindos penitentes, enormes blocos de gelo com ate vinte metros de altura.
Voltei para o acampamento cansado e com um pouco de dor de cabeça, mas com bastante hidratação e descanso aos poucos fui me sentindo melhor. Apesar de estarmos ainda no campo base e há seis horas de distancia da montanha propriamente dita estamos a quase 6000 metros e qualquer esforço a esta altitude nos deixa ofegantes. Isso vai melhorar com o passar dos dias e a aclimatação melhorar.
11-09-09 – Quase prontos para começar a escalada rumo aos campos altos
Hoje saímos novamente para uma caminhada de aclimatação com planos de subir um pouco mais do que ontem. Como tem sido o padrão, o tempo amanheceu bom, mas poucas horas depois já estava coberto e ao redor de 11 da manha nevando. Eu e a Andrea logo nos distanciamos do grupo e fizemos o mesmo trajeto de ontem em um pouco mais da metade do tempo. Já conhecíamos o caminho e estávamos mais aclimatados. Chegamos ao objetivo do dia, Lake Camp a 5100 metros e decidimos seguir ate o campo 1 a 5400 metros. Ate o Lake Camp o caminho seguia pela morena beirando os lindos penitentes, mas a partir dai a trilha estreita se tornou muito íngrime e subimos lentamente descansando a cada passo e sentindo a altitude. A vista foi ficando cada vez mais espetacular com o glaciar que desce da encosta oeste do Cho Oyu ocupando metade do horizonte.
Chegamos ao campo 1 após 3 horas e meia de caminhada dura e lá comemos nosso pequeno almoço enquanto nos deslumbrávamos com o lugar do campo. Finalmente eu estava lá, naquelas fotos que por tantos anos tinha namorado. O acampamento de uma montanha de 8.000 metros. Pequenos agrupamentos de barracas cor de laranja incrustadas nas encostas de neve e abaixo de uma parede inclinada de gelo que leva ao campo 2.
Enquanto descíamos ao Lake Camp o restante do grupo estava subindo ao campo 1. Percorremos o agora conhecido caminho ate o campo base em menos de duas horas.
Cheguei exausto e com dor de cabeça e apos comer e beber um pouco fui para a barraca e lá passei o restante da tarde ouvindo musica dormindo e acordando de tempo em tempo. Apos o jantar passamos algumas horas jogando cartas e quando fui dormir pela primeira vez em muitos dias não estava nevando.
12-09-09 – Finalmente um dia de descanso
Após e grande esforço de ontem, hoje foi declarado dia de descanso e organização. O tempo colaborou e acordamos com o melhor tempo desde o começo da expedição. Sabemos que isso e temporário, mas mesmo assim foi bom para a moral do grupo ter um dia inteiro de sol brilhando, calor relativo e vistas lindas. A frente de nosso acampamento esta o Nangpa La, o passo que liga o Tibete ao Nepal. É estranho pensar que em três dias de caminhada eu poderia estar em Namche Bazaar, o vilarejo que sempre passo nos meus treks ao campo base do Everest.
No campo base todos tem uma barraca por pessoa, um luxo que sentiremos falta mais acima. Eu e a andrea, claro, dormimos na mesma barraca, mas temos uma outra para colocar nossas coisas e hoje usamos as horas de ócio para organizar nosso equipamento e separar o que subira ao campo um dentro de dois dias. Também aproveitei o dia e o sol para lavar roupa que quase secou completamente de manha. À tarde a nevasca habitual voltou e colocamos a roupa para secar dentro da barraca extra.
Passamos as horas da tarde conversando e jogando cartas.
13/9/2009 – O dia do Puja
Hoje é o segundo dia mais importante da expedição. Claro que o dia de cume ocupa a mente e os sonhos de todos, mas para os sherpas não existe evento mais importante do que o de hoje, o dia do puja. Desde cedo eles estão fazendo os preparativos para a cerimônia, enfeitando o altar feito de pedras, organizando as bandeiras religiosas, fazendo as pequenas estátuas de tsampa, cevada moída e torrada, decoradas com manteiga. Estranhamente, as bebidas não são o que se esperaria e bandejas de coca-cola e cerveja são levadas para o altar. O mestre de cerimônias é o nosso auxiliar de cozinha que, sendo o único da equipe com treino de monge, conduz a recitação de sutras lendo de um surrado livro. De tempos em tempos, todos nós jogamos grãos de arroz em direção à Deusa Turquesa solicitando sua proteção e favores para que tudo saia bem em nossa empreitada. Estamos indo onde não devemos, para a moradia dos deuses, e só com sua generosa permissão temos alguma chance de sairmos ilesos em nossa tolice em penetrar onde não pertencemos.
Enquanto ouço o suave som da reza, olho para o Cho Oyu erguendo-se 2500 metros acima de mim apesar de já estar a uma altitude tão elevada. Hipnotizado pela atmosfera espiritual, imagino como serei capaz de chegar ao topo, se aqui os pequenos esforços, ir da minha barraca até a barraca refeitório, já me deixam ofegante. Olho a rota que, desde este ponto de vista, apresenta paredes de gelo impossivelmente verticais e longas colinas de neve profunda. Mais uma vez digo para mim mesmo que cada longa jornada tem de ser feita passo a passo e que é isso que temos feito até agora, ganhando cada metro, dia a dia.
Após meia hora de orações, o clima se descontrai e jogamos punhados de tsampa que flutua no ar cobrindo todos de uma fina poeira. Aí, com a típica atitude de brincadeira em tudo o que fazem, os sherpas pintam o rosto de todos nós com tsampa e saímos como que preparados para guerra. De tempo em tempo um dos enormes corvos que habitam o campo base vem e pousa no altar e os sherpas o enxotam prontamente. Posso perceber que eles vêem estes animais com desconfiança e superstição como que o fato de eles pousarem no altar fosse um mau omen. Os sherpas encaram escaladas de maneira muito diferente de nós. Para eles escalar, ou mais propriamente, ajudar escaladores estrangeiros a chegarem ao cume das altas montanhas de seus país, é apenas uma profissão e não ou esporte ou mesmo um prazer. Se durante um trekking ganham ao redor de US$ 12 por dia, em uma escalada ao Everest podem ganhar US$ 5.000 para dois meses de trabalho, uma soma de dinheiro considerável em um país onde o salário médio é de US$ 1 por dia! Sabem que arriscam suas vidas, mas a tentação é grande demais. Mas, sua carreira de um modo geral é bastante breve. Após algumas expedições e ao terem economizado algum dinheiro, normalmente suas famílias os fazem parar. O exemplo de nosso sardar, o chefe da equipe nepalesa, O Padawa, é bastante raro. Já escalou o Everest 11 vezes, o Cho Oyu cinco e também algumas outras montanhas de mais de 8000 e ainda continua trabalhando. Quando pergunto a ele se não há pressão familiar, ele dá um sorriso maroto e sacode os ombros como para dizer, sim há pressão, mas não ligo. Mesmo assim, não creio que escale por prazer apesar de sentir que gosta de seu trabalho.
14/9/2009 – Primeira noite no Campo 1
Já conhecendo o caminho até o campo 1, fomos liberados por Victor para subir no horário que quiséssemos, mas sempre em grupos de no mínimo duas pessoas. Neste terreno acidentado e isolado, uma simples torção de tornozelo pode tornar-se um problema sério caso você esteja sozinho. Saio com a Andrea após um descontraído café da manhã e fazemos a caminhada ao campo 1 em um pouco mais de três horas, apesar de nossas mochilas pesadas. O plano de aclimatação está funcionando perfeitamente bem e a cada vez consigo fazer o mesmo trecho com mais rapidez e facilidade. O plano para este ciclo é dormir uma noite no campo 1, no dia seguinte chegar próximo ao campo 2 e daí voltar ao campo base para recuperação por duas noites antes de iniciar o segundo ciclo.
Caminho bem até o começo da subida íngrime que leva do Lake Camp ao Campo 1 e começo a ter uma leve dor de cabeça e bastante enjôo. Chego ao campo 1 em um excelente tempo, mas me sentindo muito mal. Vou direto para a barraca que nossos sherpas já haviam montado dois dias atrás e lá fico ouvindo as vozes excitadas de todos os outros membros do grupo conforme vão chegando. A paisagem deve estar espetacular, mas não tenho disposição de sair da barraca para admirar. Tento comer e hidratar-me, coisa que, com a altitude, vai tornando-se mais e mais um trabalho e menos um prazer. Mas, a náusea vai piorando, embora a saturação sanguínea (porcentagem de glóbulos vermelhos carregando oxigênio medido através de um oxímetro) esteja razoavelmente boa e a dor de cabeça melhorando. Passo toda a tarde deitado dormitando até que de repente levanto e tenho o tempo exato de abrir o zíper da barraca e vomitar uma quantidade imensa de líquidos e comida não digerida. Sei então que os planos de subir no dia seguinte para mim estão cancelados. Passo a noite sentindo-me mal física e psicologicamente. Novamente, como em tantas outras vezes na minha experiência de escalador, eu me deparo com uma condição de saúde que ameaça meus planos. Enquanto deixo-me ficar deitado na barraca lembro-me de problemas semelhantes no Chimborazo e no Sajama no ano passado quando também tinha tido náusea e vômitos no dia de cume. Nessas ocasiões, apesar disso, ainda consegui chegar ao topo, mas agora é diferente. Estou frente a um desafio muito maior e meu processo de aclimatação estará prejudicado se não conseguir subir amanhã. Adormeço com pensamentos sombrios e preocupado
16/9/2009 – O segundo dia mais alto de minha vida
Saímos as 9 da manhã com um lindo céu azul e temperatura agradável o suficiente para usar uma camiseta de manga curta. Minha mochila estava com 20 quilos levando tudo o que eu precisava para essas duas noites a 6.400 metros. Pensei que tudo sairia sem problemas já que há três dias já tínhamos feito uma caminhada sem peso até o campo 1. Agora estava com peso, mas não precisaria voltar todo o longo caminho até o base e estava três noites mais aclimatado. Estava levando meu sleeping bag -50 graus, meu casaco -40 graus, dois colchonetes, roupas quentes, ice axe, crampons, cadeirinha, ascensor, mosquetões e mais uma serie de coisas. Desta forma nossa próxima viagem ao campo 1 poderia ser mais leve.
Estamos começando hoje o primeiro dos três ciclos programados que nos levará ao cume. A idéia é subir ao campo 1 e passar duas noites lá chegando o mais próximo possível ao campo 2. Daí descer, descansar duas noites no base e daí começar o segundo ciclo dormindo uma noite no campo 1, uma no campo 2 e chegar ao campo 3 já a 7500 metros e em seguida descer ao base para se recuperar. Virá então o terceiro e último ciclo dormindo uma noite no 1, uma no 2, uma no 3 e daí partir para o cume. Essa é a idéia, mas muitas coisas podem fazer com que tenhamos que mudar nossos planos como desempenho do grupo e condições climáticas. Deste plano se pode perceber uma coisa muito importante quando se trata de montanhas de mais de 8.000 metros. Existe a necessidade de descer ao campo base, abaixo de 6.000 metros para o organismo se recuperar dos esforços feitos acima desta altitude. Mesmo que você coma praticamente não existe absorção e mesmo descansando o organismo não consegue se recuperar. Por isso a idéia de vários ciclos.
Nas primeiras duas horas de caminhada estava me sentindo bem, mas assim que começamos a subir a última encosta íngrime comecei e sentir náusea e um pouco de dor de cabeça e ambos sintomas foram piorando e quando cheguei ao campo 1 estava me sentindo muito mal. Fui direto para a barraca que já havia sido montada dois dias antes por nossos sherpas e lá fiquei quieto esperando que melhorasse. Tentei comer algo, mas senti que só iria piorar e após algum tempo vomitei tudo o que tinha comido e bebido. No restante da noite continuei me sentindo muito mal e pela manhã tinha decidido que iria ficar na barraca esquento o restante do grupo subiria rumo ao campo 2. Quando todos já estavam quase prontos o Victor veio me convencer a subir com o seguinte argumento: eu já fiz cume de altas montanhas sem comida por 4 dias. Resolvi subir e foi uma sábia decisão. Sofrida, muito sofrida, pois estava ainda com muita náusea, mas sei que o sofrimento deste dia dará frutos mais adiante quando eu precisar deste extra de aclimatação que adquiri nesta manhã. Subi muito lentamente controlando para não ficar ofegante e pela primeira vez fui o último da fila. Todos chegamos a 6750, o segundo ponto mais alto de nossas vidas (o mais alto sendo o Aconcagua) e tivemos que parar, pois um grupo estava parado por uma hora nas cordas fixas que levam a plataforma próxima ao campo 2. Não sabemos o que estava acontecendo, mas com o frio, o vento e os minutos passando decidimos voltar ao campo 1 de lá ao base. A paisagem durante a subida estava de tirar o fôlego! Acima de nós, muito acima, o cume do Cho Oyu com um rastro de neve soprado pelos fortes ventos. Ao redor montanhas nevadas já ficando abaixo de onde estávamos e ao redor o platô tibetano de monótonas cores cinzas.
No caminho de volta ao campo base continuei me sentindo mal e voltei a vomitar próximo do acampamento. Mais tarde, conversando com o Greg, nosso médico, apareceu a possibilidade de ser refluxo que, segundo ele, é muito comum em altitude. Vou me medicar pensando nesta possibilidade.
17-09-09 – Descansando e pensando sobre o uso do oxigênio
No dia seguinte, além de descansar bastante, organizamos oxigênio, comida e equipamento para o segundo ciclo. O assunto do oxigênio voltou a ser discutido já agora com mais detalhes já que o dia de cume está se aproximando, talvez em 10 ou 12 dias. Metade do grupo, os três malteses e o Felber planejam fazer com e eu, a Andrea, o Lui e o Lucas sem. As palavras do Victor fizeram todos ficarem silenciosos. Ele disse que quem estiver considerando subir sem oxigênio deveria estar escalando pelo menos na mesma velocidade que ele, e nenhum de nós está. Para mim, a idéia de fazer sem não está tanto relacionada em fazer o feito de subir um 8.000 sem oxigênio suplementar e sim usar esta experiência para ter uma idéia do que seria o Everest com oxigênio. O Cho Oyu tem 600 metros menos do que o Everest, então imagino que eles se comparam, um sem e o outro com. Mas, só vou tomar a decisão quando estiver no campo 3 me preparando para a última subida.
Meu próximo boletim só será em três dia quando voltar do segundo ciclo. Tenho a grande esperança de poder ter boas noticias e de poder dizer que passei razoavelmente bem na minha primeira noite acima dos 7.000 metros.
19/09/2009 - A cada passo um record pessoal
Saí do campo base com uma mochila de 16 quilos e um misto de otimismo e apreensão. Estava possivelmente indo até 7500 metros, de longe o mais alto ponto de minha vida e para passar uma noite a 7100 metros, algo que com meu histórico de aclimatação vagarosa inspirava bastante medo.
O dia estava lindo, o quinto dia em seguida de céu azul e sem vento. Sei que essas janelas de bom tempo tem duração limitada e que, mais do que agora que ainda estamos razoavelmente em altitude razoavelmente moderada, esse bom tempo nos fará falta mais acima na montanha.
O trajeto até o campo 1, agora já bem conhecido, foi tranqüilo e tivemos a tarde toda para descansar e preparar-nos para o segundo dia mais difícil da expedição, o do campo 1 ao campo 2. Com um desnível de 700 metros e rompendo a barreira dos 7.000 metros esse dia só perde para o dia de cume em dificuldade.
Saímos do campo 1 as 7 da manhã levando uma mochila pesada com sleeping bag de altitude, as pesadas roupas de frio extremo, rádio e comida para uma ou duas noites no campo 2. Parte do caminho já tinha feito no primeiro ciclo até embaixo do ice cliff e desta vez foi mais fácil com a aclimatação adquirida. Daí veio a parte mais técnica de toda a escalada, uma parede de ao redor de 50 metros de neve e gelo. Se isso fosse ao nível do mar não teria maiores problemas, mas qualquer trecho técnico a esta altitude fica extremamente mais complicado. Prendi meu jumar, o mosquetão de segurança e avancei confiante, afinal eram apenas 50 metros. Mas, após apenas alguns passos já estava ofegante ao extremo e ganhar esses poucos metros me tomou 35 minutos e cheguei ao platô acima exausto e tive que ficar outros 20 minutos sentado tentando recuperar as forças. Nesse meio tempo chegou o Marco em condições semelhantes e após ele se recuperar seguimos juntos. Mas, o sofrimento não havia acabado. Na nossa frente tínhamos uma encosta de 35 graus de 100 metros de altura que nos tomou outra uma hora para escalar. Um passo, duas respirações, mais um passo. Quando o terreno se tornava mais irregular, ou quando ao colocar um pé ele escorregava novamente ficava ofegante e tinha que respirar várias vezes antes de poder prosseguir. Ao final desta longa encosta se seguiram várias outras de inclinação mais moderada e aos poucos a marca mágica dos 7.000 metros ia chegando. Quando finalmente a atingimos, 6 horas de duríssima escalada paramos para comemorar. Era o meu ponto mais alto e o record de Malta. Seguimos os últimos 130 metros até o acampamento com extremo cansaço, mas a Andrea que já havia chegado lá uma hora e meia antes nos estava esperando com chá quente e bolachas com queijo.
Para minha surpresa, passei o restante do dia sem dor de cabeça e me sentindo razoavelmente bem. Durante o tarde e o começo da noite nos dedicamos a atividade predominante de uma expedição: derreter neve e rehidratar. Não consegui comer quase nada, o que é normal nesta altitude. Uma grande lassidão tomou conta de mim e qualquer movimento necessitava de um grande planejamento. Pensava que precisava colocar mais um casaco, mas entre perceber que precisava e conseguir energia para fazê-lo um grande tempo passava.
Acordamos as 5:30 para preparar-nos para a caminhada do dia, chegar ao campo 3 a 7500 metros. Toca o despertador, abro os olhos e torno a fechá-los. Aconchego-me no fundo do sleeping bag. Qualquer movimento desencadeia uma chuva gelada de pequenos flocos de neve sobre tudo. Passam os minutos e eu digo a mim mesmo e a Andrea que precisamos começar a nos preparar, derreter neve, beber, tentar comer. Após 20 minutos finalmente tenho energia para me levantar e me agasalhar. Fora do conforto do saco de dormir está gelado. Abro o zíper da barraca e mais uma chuva de neve cai molhando tudo. Com socos doloridos no saco de neve consigo quebrar alguns blocos de gelo para colocar na panela. O fogareiro produz um calor fraco que tarda vários minutos para derreter alguns poucos blocos de gelo. Os minutos desaparecem e quando olho no relógio já são 6:30. Uma hora se foi sem que eu percebesse. Consigo tomar um litro de chá fraco e dois pacotinhos de sopa instantânea com não mais do que 150 calorias cada. Tento comer mais, mas não desce. Esse será o meu combustível para a subida.
As 7:30 finalmente estou pronto depois de colocar a cadeirinha, as botas duplas congeladas apesar de terem dormido dentro da barraca, os crampons e camadas de roupas.
Caminho lentamente tentando não ficar ofegante. Tenho apenas 40 ou 45% do oxigênio do nível do mar. Em poucos metros as horas de descanso desaparecem e novamente estou exausto. Finalmente sinto no meu corpo aquilo que tantas vezes li. Acima de 6.000 metros não existe descanso, não existe recuperação, apenas desgaste. O esforço do dia anterior volta. Subo 150 metros e vejo que não tenho mais forças para prosseguir. Viro e desço para minha barraca sentindo o gosto amargo da derrota. A opção da subida sem oxigênio está descartada. Este era a prova. Se hoje eu fosse bem tentaria sem oxigênio. Com esforço tiro os crampons e me largo na barraca que aos poucos vai se aquecendo ao sol da manhã. Durmo pesadamente sem sonhos e acordo com a voz do Lui me perguntando se estava bem. Ele tinha desistido da subida também. Um pouco mais tarde chegam o Felber e depois o Lucas que tinha semi congelado seus pés. Ele é o único entre nós que não tem botas para 8.000 mais quentes. Durmo novamente. Acordo com a Andrea chegando ao campo. Ela foi a única que chegou ao objetivo do dia, 7500 metros, novo record para a Guatemala. Mas, está exausta também. Arrumo nossas coisas, derreto mais gelo e ao meio dia e meia estamos a caminho do campo base, 1400 metros abaixo e um longo caminho para minhas pernas cansadas. Desço meio em transe ainda abatido psicologicamente com o desempenho do dia. Minha força de vontade faz com que as pernas se movam, mas o corpo todo pede que eu pare e fique onde estou. Passamos pelo campo 1, deixamos algumas coisas, pegamos outras e seguimos. Às cinco e meia da tarde chego ao campo base a recuperado pela maior concentração de oxigênio. Que felicidade, dois dias para descansar antes de subir novamente.
20-09-09 – Aprendendo a usar o oxigênio
Acordo às 8 da manhã depois de um sono de um século e me deixo ficar na barraca ouvindo música. Ouço o chamado para o café da manhã, mas me viro para o outro lado e meio durmo meio presto atenção nas letras das músicas que passam um após outra sem que eu me de conta muito bem do que estou ouvindo. O Ipod está em shuffle. Horas mais tarde ouço chamarem para o almoço. Acho um chocolate na barraca e decido ficar ali dentro. A temperatura está perfeita, pela porta aberta entra uma brisa fria. Pela fresta da barraca vejo o Cho Oyu dois quilômetros e meio acima de mim e penso que em mais dois dias estarei subindo rumo ao seu cume. Fecho os olhos e durmo um pouco mais.
Às 3 da tarde temos o treinamento do equipamento de oxigênio. Todos com exceção do Lucas e da Andrea decidem ir com oxigênio. Percebemos que sem não teríamos chance. Mas, nas montanhas não é só sua vontade que conta. A previsão do tempo nos conta que temos apenas mais quatro dias de tempo bom antes que os ventos fortíssimos se abatam sobre nossa Deusa Turquesa roubando qualquer possibilidade de cume por pelo menos uma semana. Fazemos nossas contas e vemos que se queremos ter os dois dias de descanso, o mínimo para que possamos subir novamente, temos que partir para o cume a partir do campo 2, 1100 metros abaixo do cume. Não temos tempo para subir ao campo 3. Sair do campo 2 sem oxigênio e loucura e a Andrea e o Lucas com dor no coração também tem que desistir de seus planos. Vamos todos com oxigênio suplementar. O Victor está feliz. Para ele é muito mais seguro que todos os seus clientes façam desta forma. Provamos as máscaras, testamos o regulador, colocamos e tiramos o regulador dos cilindros. Repetimos os movimentos até que eles se tornem automáticos, pois lá em cima, de noite, a menos 20 ou 30 graus, com as mãos dormidas e o cérebro embotado pela anóxia podemos facilmente aumentar o fluxo de oxigênio quando pensamos que estamos diminuindo erro que já custou muitas mortes. Temos dois cilindros de oxigênio cada um, o que dá dezesseis horas a dois litros por minuto. Isso deverá ser administrado por nós. Quando fizermos um trecho mais duro como a Yellow Band aumentaremos para 3 ou 4 litros por minuto. Se ficarmos parados em alguma fila de corda fixa, o grande medo sempre nessas montanhas, diminuiremos para 1 litro por minuto. Mas, essas são as chances de erro. Então voltamos a praticar.
Durante o resto da tarde perguntamos as mil duvidas que nos vem a mente. O que pode dar errado? Como é o terreno acima do que já conhecemos. Como é a Yellow Band? Quantas horas até cada parte? O que acontece se o oxigênio acabar? A partir de que parte na descida podemos descer sem oxigênio e sobreviver? Qual é o horário que devemos desistir não importa onde estejamos? De repente todos têm perguntas urgentes como se durante todos esses dias não tivéssemos falado mil vezes sobre tudo isso. É como se agora de repente a escalada tivesse adquirido realidade. Gora não são mais suposições e sim nossa realidade. Os medos aparecem à superfície.
21-09-09 – Preparando-se para o último ciclo
Hoje é dia de trabalho. Arrumar as mochilas, separar a comida dos campos altos, recarregar as baterias dos eletrônicos. Comer e hidratar. No café da manhã fazemos a revisão do estado de saúde de todos. Eu tive diarréia ontem, o Felber também. O Greg, um homem de 100 quilos e físico perfeito está abatido por vômitos durante toda a noite. O Lucas está tentando combater o segundo episódio de laringite e está muito preocupado. O Lui ontem caminhando de volta a barraca a noite torceu o pé. Fora isso, todos com saúde perfeita e prontos para subir.
Agora são meio dia e dentro de 3 dias, dentro de exatamente 72 horas sonho estar no cume da sexta mais alta montanha da Terra. Não sei se vou conseguir, nenhum de nós sabe. Estamos nesta expedição há 23 dias e amei cada segundo dela. O cume será um premio. Sinto assim agora, mas sei que se não chegar será muito difícil pensar assim. Sei que ficarei frustrado. Coloquei muita energia nisso tudo. Muitos sonhos, muito dinheiro, muito tempo. Quero o cume. Mas, tenho que aceitar o que vier.
22-09-09 – No Campo 1
Como a caminhada ao campo 1, agora já aclimatados e leves, demoraria apenas 3 ou 4 horas, cada um de nós saiu em horários diferentes. Eu e a Andrea fomos os últimos a sair e caminhamos vagarosamente, poupando energia. Chegamos ao campo 1 às 3 da tarde prontos para descansar, mas um trabalho duro nos esperava. Nesses dias que nossa barraca ficou ao sol, o gelo embaixo do piso derreteu e o terreno ficou tão irregular que não era possível dormir. Tiramos a barraca do lugar, cavamos o gelo e preenchemos os buracos com neve até que a plataforma estava novamente habitável. O tempo continuava lindo com céu azul e sem vento. Precisamos de apenas mais dois dias de tempo bom!
Dedicamos-nos então a hidratar-nos e comer o que conseguirmos, pois amanhã já estaremos acima de 7.000 metros e o apetite desaparecerá.
23-09-09 – A longa jornada para o sucesso!
Apesar de eu achar que já tinha levado quase tudo o que precisava para o campo 2 fiquei surpreendido com o peso da mochila. Além disso, tem o peso que está no corpo: as botas duplas com 3 quilos, a cadeirinha com mosquetões, os crampons e as roupas pesadas no corpo.
Saímos as 7 e meia da manhã com bastante frio, apesar do céu azul, com planos de chegar ao campo 2 no máximo à uma da tarde. Com isso teria ao redor de 8 horas de descanso antes de sair para o cume. Após meia hora de escalada encontrei o Lui se queixando de muita dor nas mãos por causa do frio. Tinha saído com luvas finas e a manhã estava realmente gelada. Tirei suas luvas e coloquei suas mãos nas minhas axilas enquanto abria um pacote de hand warmers (pequenos envelopes de substância química que ao reagir com o ar produzem calor) e pegava minhas luvas mais grossas. Após vinte minutos de muita dor suas mãos esquentaram e prosseguimos. Subi o obstáculo entre o campo 1 e o 2, o Ice Cliff. Desta vez, bem mais aclimatado, consegui subir com muito mais facilidade. Cheguei ao campo 2 às duas da tarde e fui imediatamente para a barraca para me hidratar e descansar. Por duas horas eu e a Andrea derretemos litros de neve e comemos um pouco, o máximo que nossos estômagos aceitavam a esta altitude extrema. O plano era sair à meia noite de modo que eu teria 8 horas para descansar antes do grande dia. Quando já estava pronto para dormir o Marco veio de barraca em barraca avisar que o Victor tinha decidido antecipar a saída para as 10 e meia da noite. Já há vários dias que todas as expedições sabiam que o dia 24 era o que a previsão metereológica tinha avisado ser o melhor dia de cume e todos tinham acertado seus planos para subir nesta mesma noite. Com isso, o Victor achou melhor sair mais cedo para tentar evitar as filas nas cordas fixas da Yellow Band, uma área de rochas um pouco acima do campo 3. Desde a tragédia de 1996 quando 10 escaladores morreram no Everest em parte por causa dos congestionamentos nas cordas fixas próximas do cume que este tipo de situação é temido e evitado.
Com este novo horário de partida, tinha apenas 4 horas para dormir, pois o preparar para sair em alta montanha raramente tarda menos do que duas horas entre derreter neve, tentar comer algo e se vestir e equipar. Apesar da ansiedade crescente, consegui dormir superficialmente por algumas horas e despertei um pouco mais descansado às 8:30 da noite quando tocou o despertador. As próximas duas horas passaram muito rápido, mais do que eu posso recordar. Só sei que às 10:30 da noite metade do grupo já estava do lado de fora das barracas colocando os crampons. Pela primeira vez vesti meu down suit, o traje integral de pena de ganso sobre duas camadas de roupas térmicas, coloquei a máscara de oxigênio com fluxo de 2 litros e saí do calor da barraca para enfrentar o frio de 7100 metros. A noite estava estrelada e sem absolutamente nada de vento, mas mesmo assim fria. Tinha vontade de urinar, mas só de pensar no trabalho com o down suit e a cadeirinha acabei desistindo. Na confusão da escuridão cortada pelo facho das lanternas de cabeça vi que o Victor já estava saindo acompanhado de 2 ou 3 outros. Acabei de me arrumar, me despedi da Andrea lhe desejando boa sorte e comecei a caminhar. Após 50 metros de plano iniciei a subida que levaria 400 metros mais acima ao campo 3 e me surpreendi com a facilidade com que ganhava os metros verticais por causa do oxigênio. Acima de mim, podia ver uma longa fila de luzes que iam até se misturarem com as estrelas. Mais expedições tinham tido a mesma idéia que nós de sair cedo. Não reconhecia ninguém e não sabia quem era de nosso grupo e quem não era. Tudo se resumia a escuridão com vultos, todos vestidos da mesma maneira, down suits vermelhos cobrindo todo o corpo e o rosto encoberto pelas máscaras de oxigênio. Conforme fui caminhando, comecei a sentir um desconforto cada vez maior por causa do calor. O que mais temia estava acontecendo. Tinha me vestido com demasiadas camadas e como ainda era razoavelmente cedo, antes da meia noite, não estava frio o suficiente para todas as roupas que estava usando. A sensação de calor foi minando minhas energias e minha velocidade foi caindo assustadoramente. Tirar alguma camada era impensável. Teria de parar, tirar os crampons, as botas, o down suit e isso, além do extremo gasto de energia, me exporia ao frio da noite à quase 7500 metros. Para piorar a situação minha lanterna quase apagou e não conseguia colocar os pés de maneira eficiente nas pegadas deixadas pelos que tinham ido na minha frente e escorregava com freqüência. Tinha uma lanterna sobressalente, mas para pegá-la teria de parar, tirar a mochila, buscar a lanterna e nesta altitude onde cada pequeno movimento significa ficar ofegante por alguns minutos o simples fato de pegar uma lanterna era algo que estava além do que eu podia pensar. Mas, além do cansaço, nesta altitude sentia uma espécie de preguiça mental, só de pensar em parar e fazer algo já me dava um desanimo extremo, então continuei mesmo sem enxergar muito. Achei que ia encontrar com Victor e o resto do grupo no campo 3 e concentrei todas minhas energias em ganhar esses 400 metros para dai poder parar junto com o grupo. Fiquei amargamente desapontado ao chegar ao campo 3 e ver que o grupo não estava mais lá. Não sei se tinham parado e já partido ou se nem haviam parado. Sentei na neve e fiquei pensando no porque estava lá. Não estava escalando, estava simplesmente caminhando em uma interminável encosta. Não estava me divertindo, estava apenas sofrendo com o calor, com a falta de oxigênio, no escuro, sozinho. Veio uma enorme pena de mim mesmo e uma vontade enorme de descer. Escalar em gelo e neve era outra coisa. Quando estava em uma parede de gelo tinha que usar minhas habilidades de escalador, colocar o ice axe de maneira correta, cravar as pontas dos crampons de maneira correta. Aqui não, estava apenas caminhando e sofrendo. Para piorar, o Padawa, nosso sherpa principal chegou até onde eu estava para ver o que estava acontecendo e eu lhe perguntei quem estava atrás de mim e ele me disse que eu era o último. Isso acabou de me liquidar psicologicamente. Eu era o último? Como? Eu que sempre sou tão forte? Ainda muito dividido entre continuar e voltar, levantei e recomecei a subir. Daí, quase como por milagre, senti-me mais forte e o calor que até agora tinha minado minhas forcas desapareceu e comecei a melhorar meu ritmo e em pouco tempo estava atrás do Lui e o simples fato de ter a companhia dele me fez sentir que tudo estava correto. Com o novo ritmo comecei novamente a sentir prazer de estar lá. Olhei para o altímetro e vi que já estava a 7700 metros e pensei no que isso significava. Estava quase na mesma altitude do Nuptse, um dos gigantes do Himalaia que vejo cada vez que guio grupos ao campo base do Everest. Realmente estava lá, tão alto?
Na minha frente, por outro lado, o Lui começou a diminuir seu passo e com isso fazia paradas cada vez mais longas para recuperar o fôlego. Perguntei se estava bem e ele disse que sim, apenas cansado. Pedi para ultrapassá-lo já que ele também estava acompanhado por uma sherpa e segui adiante. Após mais meia hora, para minha grande surpresa, encontrei o restante do grupo. A Andrea estava a minha frente e isso me deixou extremamente feliz já que desde que havia saído da barraca sabia com certeza de que não iria vê-la até o final da escalada, pois ela era muito mais rápida do que eu. Havíamos chegado à temida Yellow Band, o trecho de escalada mista, gelo e rocha, que a esta altitude 7800 metros era um desafio considerável. Uma grande fila havia se formado com um grupo de alemães que tentavam chegar ao cume sem oxigênio, mas que estavam demorando uma eternidade para cruzar este desafio. Quando finalmente chegou minha vez de cruzar os dois trechos de rocha, me deparei com uma parede de rocha saindo do gelo. Apesar da altitude extrema e da grande inclinação fui subindo sem maiores problemas usando as pontas dos crampons contra as paredes de rocha e usando a corda fixa como apoio. Um pouco mais tarde, bastante ofegante, estava acima do obstáculo e com uma longa encosta de neve a minha frente levando ao platô do cume. As primeiras luzes do alvorecer pela primeira vez me permitiam ter uma idéia de onde estava. Tinha atingido 8.000 metros. Não podia acreditar! Estava a 8000 metros! Acima de mim apenas 14 montanhas no planeta. Continuei subindo sabendo que eu chegaria no cume. Ao invés de estar mais cansado, me sentia cada vez mais leve, mais energético apesar de já estar escalando a mais de 7 horas sem beber uma gota de água ou comer nada. Acho que o sonho me empurrava para cima. Parte do grupo parou para trocar de cilindros de oxigênio e ao checar o meu vi que ainda tinha metade sobrando, o suficiente para chegar de volta ao campo 2. A Andrea seguiu na frente e eu um pouco atrás. O restante do grupo tinha ficado para trás e agora, já com o sol brilhando no horizonte, alcancei o enorme platô do Cho Oyu. Deste ponto era mais meia hora até o cume verdadeiro, meia hora de caminhada quase plana. Eu sabia que só chegaria ao cume quando pudesse ver o Nepal com o Everest, Lhotse e Nupse, além de dezenas de outras montanhas que conhecia tão bem dos meus vinte anos de trekkings no Khumbu. E então, de repente, estava lá, de frente ao Everest, no cume da sexta mais alta montanha do planeta. O frio de menos 30 graus tinha se composto com o vento dando uma sensação térmica de menos de 40 graus negativos. Quase mecanicamente tirei as fotos de cume, filmei a Andrea com as suas bandeiras de patrocinadores e país (ela se tornava na primeira mulher centro americana a escalar um 8.000 metros). Quando acabamos com nossos deveres olhamos um para o outro, nos abraçamos e choramos e nestes segundos liberei toda a emoção que estava no meu coração, todo o cansaço desse mês de esforços, privações, dores e alegrias. Após vinte anos de sonhos estava onde tantas, tantas vezes tinha me imaginado estar. Tentava compor a imagem que tinha das pessoas que tinham escalado um 8.000, meus heróis, com estar ali, no cume do Cho Oyu. Será possível que eu agora também fazia parte desse tão seleto clube? O Everest estava a poucos quilômetros de mim e a poucas centenas de metros acima. Em março eu estaria a caminho do seu cume e agora, visto da perspectiva do Cho Oyu, ele já não era tão intimidante. Eu tinha conseguido chegar ao topo do Cho Oyu. Também chegaria ao Everest. Por momentos me senti invencível até que o Victor nos lembrou que escalar uma montanha significava chegar ao seu topo e voltar a sua base e que só havíamos feito metade do caminho. Aos poucos foram chegando o restando do nosso grupo, o Lucas de Zorzi, o Luis Antônio Felber, os três malteses, Greg, Robert e Marco e com muita tristeza soube que o Lui havia voltado 200 metros abaixo do cume por causa de problemas com sua visão. Não estávamos todos os oito companheiros lá em cima. Faltava o Lui.
Quando me preparava para descer, tive um acesso de tosse e por um minuto fiquei com uma terrível ânsia de vômito que passou ao recolocar a máscara de oxigênio. Tinha ficado no cume ao redor de 40 minutos sem oxigênio e os efeitos do ar extremamente rarefeito estavam agindo.
Do caminho de volta ao campo 2 eu me lembro muito pouco. Não é surpreendente dado o estado de exaustão que me encontrava. Lembro da descida da Yellow Band rapelando com as pontas dos crampons raspando nas rochas, e da longa descida do campo 3 vendo o campo 2 lá em baixo e enganadoramente perto. A noite foi um tanto agitada como sempre que se dorme muito cansado.
No dia seguinte, como tinha sido predito pela previsão metereológica, amanheceu com um céu cinza feio e o tempo foi piorando durante o dia e quando chegamos ao campo 1 já estava nevando. Chegamos ao campo base às 2 da tarde cobertos de neve e fomos recebidos por carinhosos abraços de Pemba, nosso cozinheiro, e uma mesa cheia de petiscos. Sabia que se fosse para a barraca não sairia de lá de modo que fiquei na barraca refeitório até a noite. Quando o grupo todo chegou, o Victor abriu uma caixa com 24 cervejas e o Pemba uma de coca cola e esquecendo o cansaço, trocamos experiências até às 9 da noite. O Lui nos contou que conforme foi subindo foi percebendo que seu olho esquerdo foi ficando estranho e que ao redor de 8000 metros já não enxergava nada deste olho. Seu sherpa queria que ele seguisse até o cume que estava a não mais do que uma hora de escalada, mas ele decidiu sabiamente que era melhor voltar. Ele também disse que estava com vontade de voltar a tentar após alguns dias de descanso, mas, se ele estava tão cansado como eu, isso só poderia ser possível se parte deste descanso fosse em Tingri ou algum lugar bem mais baixo do que o campo base. No Cho Oyu, o campo base fica a 5700 metros, 400 mais alto do que o do Everest e nós já estamos aqui ou acima desta altitude há 20 dias e sinto que não existe aclimatação verdadeira a esta altitude. Cada vez que vou da minha barraca a barraca refeitório, meros 15 metros fico ofegante.
Estou felicíssimo de ter conseguido chegar ao cume do Cho Oyu, mas agora quero ir embora, quero descer para poder me recuperar do cansaço acumulado deste mês. Aqui, isto não é possível.
Nossa expedição foi abençoada em muitos sentidos. Nunca ouvi falar de um período tão longo de tempo perfeito em uma montanha de 8000 metros. De nós oito sete chegaram ao cume e um a 200 metros dali. Não tivemos nenhuma doença séria entre nos, só as habituais mazelas de montanha, gripes, dores de garganta, diarréias e dores de cabeça. Ninguém se acidentou. Convivemos super bem por mais de um mês e saímos da expedição como amigos que querem e vão se rever em alguma outra montanha deste lindo planeta. Não dá para pedir mais do que isso. Como única mancha na nossa felicidade, no dia seguinte ao nosso cume ficamos sabendo que um americano de 73 anos que estava tentando pela segunda vez o Cho Oyu havia morrido ao descer do cume. Ainda não sabemos de detalhes, mas aparentemente ele morreu ao chegar ao campo 2 de enfarto ou derrame, condições razoavelmente freqüentes em alta montanha. Seu corpo será trazido ao campo base amanhã por um grupo de seis sherpas, tarefa ingrata e perigosa. Ele subiu com o auxilio de Martin, um guia californiano que no decorrer deste mês se tornou nosso amigo e nós todos estamos muito tristes por Cliff que morreu e por Martin que tem nos próximos dias várias tarefas difíceis.
Agora é descansar por dois dias enquanto esperamos os yaks que levarão nosso equipamento ao campo intermediário e de lá tomar os jeeps que nos levarão de volta a Katmandu, onde devemos chegar dia 29 de setembro.
Por apenas algumas poucas horas duvidei da validade do que estava fazendo nesta montanha e isto foi nas primeiras horas do dia de cume quando ainda não tinha encontrado meu ritmo. De resto foi um dos meses mais felizes de minha vida e não vejo a hora de repetir esta experiência no Everest no começo do próximo ano. Ainda não sei responder a clássica pergunta de por que alguém dedica tanto tempo e dinheiro, arriscando a saúde e a própria vida para ficar alguns minutos no topo de alguma montanha. Não sei formular uma resposta lógica para isso, apenas sei dizer que no fundo do meu coração está a resposta e ele me diz para seguir escalando e chegando ao topo das montanhas e estou acostumado a seguir o que ele me diz.
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